A avaliação é do secretário de Relações Internacionais do PCdoB, José Reinaldo Carvalho. Preparado para embarcar para a Venezuela, onde participará do congresso de fundação do PSUV como representante do PCdoB, o dirigente falou ao Vermelho sobre o cenário em que se deu a libertação das reféns das Farc, Clara Rojas e Consuelo González, e do papel do presidente venezuelano nas negociações. “Seria o caso de perguntar aos que apostaram na derrota de Chávez: ‘por que não se calam?’”, ironizou.
Por Priscila Lobregatte
Consuelo, Chávez e Clara: sucesso das negociações
José Reinaldo Carvalho
O significado da libertação
''A libertação das duas reféns dia 10, por uma iniciativa unilateral das Farc, é uma grande vitória do povo colombiano, ao mesmo tempo em que é um extraordinário acontecimento político. É também uma vitória de todas aquelas forças que na Colômbia, na América Latina e no mundo apostam na paz e na luta pelos direitos humanos. Ao mesmo tempo, é uma prova de que é possível avançar na luta por uma paz justa, assim como é uma prova da justiça da bandeira do intercâmbio comunitário de prisioneiros. As Farc deram prova importante de boa vontade. Tais forças lutam há muitos anos pelo que eles chamam de intercâmbio humanitário e não têm encontrado eco nenhuma resposta positiva do governo Uribe, nem dos governos anteriores. As Farc entregaram as duas prisioneiras, assim como estavam dispostas a entregar o menino Emanuel, sem receber nada em troca. Em atenção a Chávez e legitimando a atitude correta do presidente venezuelano, as Farc tomaram essa decisão''.
O papel de Hugo Chávez
''Chávez revelou qualidades de um estadista hábil, contrariamente ao que muita gente diz. Ele se revelou um homem persistente porque quando todo mundo já tinha proclamado o fracasso da operação Emanuel, ele continuou. Mostrou-se também um bom negociador de vocação pacificadora e unificadora, dois dos ideais do bolivarianismo e demonstrou que é um democrata porque teve capacidade de suportar as maiores injúrias com paciência uma vez que estava lutando por uma causa maior, que era a causa humanitária. Acho que ele tirou de letra o resultado negativo do referendo.
No último pronunciamento que fez no programa “Alo Presidente”, ele chegou a dizer que era preciso que as forças políticas da Venezuela lessem atentamente Lênin, que tirassem daí as conclusões de que é preciso fazer com que a revolução marche de acordo com o ritmo do próprio povo, da consciência das massas, que era preciso evitar as precipitações e reconheceu que cometeu alguns erros, que estava indo além do ritmo que a realidade comportava. Ele ainda citou Lênin para dizer que era preciso fazer mais política de alianças e reconheceu que uma das deficiências do processo venezuelano era o afastamento da revolução em relação à classe média e em relação ao empresariado nacional. Chávez jogou um papel importante nisso tudo e vem insistindo para que continuem as conversações. Seria o caso de perguntar aos que apostaram na derrota de Chávez: “por que não se calam?”''.
Implicações na integração latino-americana
"Acho que se esse processo for adiante ajudará a criar um ambiente propício ao avanço da integração latino-americana. Agora, é preciso compreender o seguinte: o processo de integração latino-americana pressupõe o fortalecimento das organizações políticas avançadas, de governos como o de Chávez, de Lula, de Tabaré, de Cristina Kirchner, de Daniel Ortega, entre outros. E o combate, pelas forças populares, a regimes pró-americanos, como é o caso do regime de Uribe que, de maneira isolada, é abertamente pró-americano. Acredito que o processo pode avançar, mas não tenho nenhuma ilusão com relação a essa figura sombria do quadro político americano chamado Álvaro Uribe Vélez porque ele já declarou reiteradas vezes que é contra o processo de pacificação. Ele só vê a possibilidade de paz na Colômbia se as Farc se renderem ou forem aniquiladas, propósito no qual ele fracassou e vai fracassar porque as Farc não vão se render e, por serem uma força política e militar muito bem estruturada, não será aniquilada pelo exército colombiano".
Áreas desmilitarizadas
"O fato de as Farc ter entregado as prisioneiras sãs e salvas reforça a reivindicação de que seja criada uma área desmilitarizada, para que se iniciem conversações sérias e francas, com o acompanhamento internacional, tendo em vista avançar no intercâmbio humanitário como primeiro passo para os acordos de paz que são um outro capítulo que precisa ser aberto. Uma paz justa, democrática, com justiça social e não a paz da capitulação e do aniquilamento da guerrilha, que Uribe pretende. Ressalto que a libertação, que alegrou a todos os lutadores pelos direitos humanos no mundo, aconteceu apesar de Uribe, o principal responsável pelo fracasso da operação Emanuel no dia 31 de dezembro, na medida em que, de maneira traiçoeira e desleal, não determinou que o exército colombiano cessasse as operações de guerra na região em que os guerrilheiros iriam libertar os reféns".
"Há poucos dias, o ministro das Relações Exteriores da Colômbia, Fernando Araújo, fez uma provocação dizendo que o governo colombiano não reconheceria mais qualquer que fosse a comissão humanitária internacional porque a comissão, ao invés de promover a fiscalização do processo de libertação, fizera o jogo das Farc. O chanceler colombiano tentou desqualificar a comissão formada, entre outros pelo ex-presidente da Argentina, Nestor Kirchner, o assessor da presidência da República do Brasil, Marco Aurélio Garcia, e outras figuras importantes. A vitória democrática da libertação das prisioneiras se dá apesar do governo ditatorial de Uribe".
Farc: forças insurgentes
"As Farc, assim como o Exército de Libertação Nacional e já extinto M19, entre outros, representam “partidos-guerrilha”, ou seja, partidos armados. São forças políticas que, nas circunstâncias peculiares da Colômbia, foram obrigadas a utilizar como recurso a forma de luta armada. Portanto, são forças políticas insurgentes porque têm um programa e objetivos políticos. As Farc defendem o socialismo e se orientam pelo marxismo-leninismo. E do ponto de vista estratégico da etapa de transformações que a Colômbia precisa atravessar no atual momento, as Farc propõem a conquista de uma Colômbia democrática e soberana, com justiça social".
Relações com o narcotráfico
"O imperialismo norte-americano e o governo narcoterrorista do Uribe acusam as Farc de serem uma organização narcoguerrilheira ou narcoterrorista. Aliás, a Rede Globo diariamente ofende os ouvidos do telespectador brasileiro com esse discurso desairoso em relação a um conflito político sério e que não pode ser tratado dessa maneira. Isso é uma acusação do imperialismo norte-americano que resolveu indexar como terroristas várias organizações políticas do mundo, algumas de inspiração marxista, outras de cunho religioso, aproveitando-se do fato de a Colômbia ter se transformado, ao longo dos anos, no paraíso dos narcotraficantes . Aliás, o mercado norte-americano é o grande responsável pela produção de cocaína porque se não houvesse um mercado consumidor tão amplo, essa produção feneceria. Essa é uma acusação que nunca foi provada. Há muitos documentos e entrevistas de dirigentes das Farc referindo-se a esse problema. As Farc condenam o narcotráfico. O que as Farc admitem que fazem é cobrar o que eles chamam de “imposto de guerra” de atividades que se realizam nos territórios onde as Farc operam. Então, é possível que cobrem essa taxa de gente envolvida no ciclo de produção da folha de coca".
Reféns civis
"Compreendo o contexto em que são feitos os prisioneiros de guerra entre ativistas diretamente ligados ao conflito, como agentes da CIA, da repressão, oficiais do exército, inimigos declarados etc, o que não era o caso, por exemplo, de Ingrid Betancourt, surpreendida numa região em que as Farc não admitiam a entrada de ninguém e numa circunstância em que se intensificou a campanha de cerco e aniquilamento dos guerrilheiros. Na época havia uma conversação de paz, uma zona desmilitarizada e o então presidente da Colômbia, André Pastrana, chegou a conversar pessoalmente com o comandante em chefe das Farc, Manuel Marulanda, e de repente, no apagar das luzes do governo, instado pelos Estados Unidos que tinham imposto ao país o chamado Plano Colômbia, o governo colombiano resolveu acabar com a zona desmilitarizada. Depois disso, os americanos e alguns governos da União Européia indexaram as Farc como organização terrorista e iniciaram perseguições a dirigentes que viviam exilados. Inclusive, em alguns países funcionavam escritórios das Farc com o consentimento dos governos e esses escritórios foram fechados e os dirigentes que estavam nestes países tiveram de passar para a clandestinidade. Alguns foram até seqüestrados".
"De qualquer forma, é legítimo que se discuta porque que se seqüestra civis que não têm vinculação direta com o conflito. Embora também se possa afirmar que a maioria dos reféns das Farc são pessoas ligadas ao conflito, que combatem as Farc politicamente ou militarmente. Entre eles há agentes da CIA. Reconheço essa situação como um grande drama humano e acho que as Farc também reconhecem na medida em que colocam como prioridade da sua ação política o intercâmbio humanitário. Isso significa que para eles não é um troféu, nem uma situação cômoda a existência dos reféns".
Visão midiática da libertação
"A mídia brasileira, fazendo eco de parte da mídia mundial, monopolizada pelo capital financeiro e pelo imperialismo, especificamente a Folha, O Estado e a rede Globo, revelou não só o as opções políticas e ideológicas que adotou, mas também uma grande desqualificação. A começar pela Folha de S. Paulo, que fez uma entrevista via e-mail com o comandante Raul Reis. Foi uma entrevista ping pong e nos últimos dias de dezembro publicou apenas um resumo da entrevista. Então, se um assinante ou um leitor da Folha quiser tomar conhecimento de uma entrevista que o jornal fez com o comandante das Farc tem de entrar no site das Farc. A rede Globo, por sua vez, se contenta em dizer “a narco-guerrilha das Farc...”. E para ela isso é tudo. E O Estado de S. Paulo todo o tempo apostou no fracasso da operação Emanuel porque com isso ficaria demonstrado o fracasso de Chávez. Passado o episódio, perguntamos quem fracassou. Fracassou a mídia que fez uma cobertura pobre, desqualificada e mentirosa. Pior do que isso: tomou o lado errado porque claramente defendeu o governo narcoterrorista de Uribe e enveredou pelo caminho da desqualificação pura e simples das Farc e de Chávez. É a mídia que temos, com a qual temos de nos defrontar. Mas hoje há um ambiente político melhor na América Latina e as pessoas acabam tendo outras fontes de informação".
Simplismo pós-moderno
"A Folha de S. Paulo diz que as Farc são um resquício da Guerra Fria. Não é isso. Isso é o simplismo pós-moderno da Folha. Há um conflito armado que se prende a questões do sistema político interno e o Uribe, o governo norte-americano e seus aliados na mídia latino-americana e brasileira não querem reconhecer isso. Não querem das às Farc o status de força política insurgente porque não querem reconhecer que a sociedade colombiana está dilacerada por uma guerra interna. É cômodo para eles classificar como terrorista ou como narcoguerrilheiro porque, é óbvio, o narcoguerrilheiro é tratado como bandido e não como elemento de uma força política. É preciso resgatar esses fatos do passado para mostrar que não é de hoje que há essa tentativa de pacificar a Colômbia".
Drama humanitário
"O processo de paz e guerra na Colômbia é antigo e complexo. Essa guerra já deixou 70 mil mortos nas últimas cinco décadas. É um grande drama humanitário. Existem na Colômbia mais de 5 milhões de deslocados, ou seja, pessoas que tiveram de sair de suas casas e sítios e migrar. Elas vivem como zumbis nas cidades da Colômbia. E existe o fenômeno do paramilitarismo, que é a grande força aliada de Uribe, agindo em nome da oligarquia latifundiária e, a pretexto de combater os guerrilheiros, praticou um verdadeiro genocídio de camponeses".
Força política stricto sensu
"Lembro ainda que no começo dos anos 80 houve uma tentativa séria de as Farc se transformarem em força política stricto sensu. Acredito que é um caminho válido e acho que as Farc buscam esse caminho. O que elas não podem é entregar as armas e se renderem. As Farc já deram vários sinais de que não querem apenas o intercâmbio humanitário e vêm dando sinais de que querem atuar como força política. Nesse processo, uma frente política chamada União Patriótica, na qual dirigentes da guerrilha chegaram a atuar, elegeu diversos vereadores, deputados, senadores e apresentaram candidatos aos governos estaduais e provinciais e para presidente da República. E 3 mil ativistas políticos foram assassinados pelo governo oligárquico de então. Ou seja, não é gratuitamente que existe uma guerrilha na Colômbia. Há um conflito interno que se prende a problemas do país. E mais. O M19, que se transformou em força política, apresentou candidatos à presidência da República e tem vários membros com atuação política no Pólo Democrático, uma força responsável que elegeu de novo o prefeito de Bogotá. Mas o M19, no processo de negociação e de entrega das armas, teve vários de seus comandantes e soldados dizimados por um governo que não tem lealdade ao lidar com o adversário político, que não dialoga com ele. O problema colombiano é muito complexo e não cabem soluções simplistas".
Paz democrática
"Acho que não há outro caminho para o povo colombiano se não o de apostar numa paz democrática com justiça social e, portanto, o PCdoB e todas as forças democráticas em nosso país devem apostar nesse caminho como gesto de solidariedade às forças políticas da Colômbia, insurgentes e não insurgentes. Esta é uma grande bandeira que as organizações políticas brasileiras, pela influência que tem o país, deveriam assumir. É falso se enveredar por um caminho de apoio às forças não insurgentes e condenarmos as insurgentes. Apoiamos ambas desde que essas forças tenham um programa político claro, o que nos parece que as Farc têm. E, portanto, têm que ser respeitadas como tal".
| José Reinaldo Carvalho - jornalista, 50 anos, ingressou no Partido (PCdoB) em 1972, profissional do Partido, vice-presidente e Secretário Nacional de Relações Internacionais, desempenhou tarefas do Partido no exterior durante três anos e meio, editor do jornal A Classe Operária e da revista Princípios entre 1982 e 1990, eleito membro do CC desde o 7º Congresso. |
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