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O caso das crianças escravizadas na China por oficiais comunistas de alto posto e donos de olarias, que veio a público em 15 de junho passado, obrigou a Folha a se manifestar. Não teve jeito de se esquivar, como faz sistematicamente com os prisioneiros políticos de Cuba e com os encontros do Foro de São Paulo. Mas, é claro, ela sempre pode dar a sua versão dos fatos, mesmo afirmando estar traduzindo matéria da Associated Press.
Com atraso de uma semana, a Folha lança a matéria "Escravidão chinesa vira escândalo". É uma matéria baseada no artigo "China announces arrests in slave scandal", de autoria de Christopher Bodeen, da Associated Press. Mas será mesmo uma tradução?
Há vários parágrafos e períodos faltantes, bem como inserções deliberadas. Vejamos algumas das anomalias:
O parágrafo:
"The scandal that has brewed on the Internet and in state media prompted an extraordinary self-criticism this week from Shanxi Governor Yu Youjun, making him the first high-ranking official to perform a potentially career-damaging act of contrition in relation to the case."
sofreu um transformismo e virou:
"O escândalo gerou um episódio extraordinário de autocrítica, esta semana, da parte de Yu Youjun, governador de Shanxi."
Quando a Folha faz a escolha de omitir a ênfase de que se trata de um oficial de alto escalão do Partido Comunista, o leitor é levado a crer que foi um caso isolado, numa província distante, num rincão, longe dos tentáculos do partidão.
Outro parágrafo, de um desconfiável didatismo:
"Wen e o presidente chinês, Hu Jintao, governam sob o lema da ‘sociedade harmoniosa’, que promete prioridade à redução das diferenças entre ricos e pobres no país. Shanxi e Henan são províncias atrasadas quando comparadas com as regiões costeiras da China, onde se concentrou o desenvolvimento econômico das últimas décadas."
não está no artigo original, é uma inserção deliberada.
Já o parágrafo original:
"Workers, including small children, were kidnapped or lured with false promises of well-paying jobs by recruiters at train and bus stations. Sold on to kiln owners, they were beaten, starved and forced to haul bricks for up to 20 hours per day for no pay. Many of those rescued showed serious injuries from burns and beatings.",
que poderia ser adaptado por:
"Trabalhadores, incluindo crianças pequenas, eram seqüestradas ou iludidas com falsas promessas de empregos bem pagos por recrutadores em estações de trem e terminais de ônibus. Vendidos por donos de olarias, eram espancados, sua alimentação era negada e eram forçados a carregar tijolos por até 20 horas por dia sem pagamento algum. Muitos dos resgatados apresentaram sérios ferimentos de queimaduras e espancamentos."
foi totalmente excluído da "tradução". Com esse trecho, o leitor teria mais material e poderia se perguntar: quem recrutava as crianças e as vendia, sabendo-se que o controle total das províncias é efetuado pelo Partido Comunista?
Mas o pior está na seguinte inserção no penúltimo parágrafo, que não consta absolutamente da matéria original:
"O governo do condado de Hongtong despachou equipes a 12 cidades para entregar aos parentes das vítimas cartas em que pede desculpas e promete indenizações de 1.410 yuans (US$ 184) por mês de trabalho de cada operário escravo - valor três vezes superior ao do salário mínimo local."
E ao final da matéria original da AP:
"However, reports Friday said some parents had been contacted by their abducted sons who told them they would be released on payment of a ransom. The official China Daily newspaper said a family surnamed Yuan said their son told them the kiln boss was demanding $4,600 for his release. It said other operators had been tipped off to raids and shifted their slave laborers to remote hiding places."
que poderia ser adaptado para:
"No entanto, relatos afirmam que alguns pais foram contactados por seus filhos seqüestrados dizendo que eles seriam soltos mediante o pagamento de resgate. O jornal oficial afirmou que uma família de sobrenome Yuan disse que o chefe da olaria estava exigindo $4.600 por sua soltura. Disse que outros operadores do esquema receberam dicas de que haveria batidas policiais e deslocaram seus escravos para locais longínquos e escondidos."
Ou seja, o leitor da Folha tem a impressão de que o governo comunista da China está fazendo tudo para reparar as vítimas pelo ocorrido, pagando acima do normal, o que está totalmente ausente da matéria original.
Embora a escolha da Folha pela matéria da agência AP já seja enviesada, dado que a fonte principal da matéria original são os jornais oficiais chineses, ainda assim o jornal "que nunca se vende" consegue enviesar mais ainda a matéria e, além disso, criar novidades favoráveis ao regime chinês.
Por isso, leitor, quando a Folha afirmar que seu texto é uma tradução de agência internacional, tome cuidado. Pode tratar-se de uma adaptação bastante livre.